Fim do mundo
quarta-feira, novembro 24, 2004
Morpheus

[Quadrinhos]

Hoje nós vamos falar de quadrinhos. O Quê? Cala a boca! Quadrinhos são legais, eu aprendi a ler lendo essa bosta, por isso acomode-se. O texto é grande.

Então tem esse cara que se chama Neil Gaiman. Ele escreve coisas. Quadrinhos principalmente. Se você não conhece histórias em quadrinhos não sabe o que está perdendo. Mas isso é pra outra hora. Por enquanto, o que você tem que saber é que existe um cara que chama Neil Gaiman e que ele é escritor. Pronto. Nada mais do que isso.

Conheci a obra do Gaiman antes de ter lido qualquer coisa que ele tinha escrito. Nesse mundo de fãs obsessivos -- como são quase todos os fãs de quadrinhos -- os nomes dos grandes criadores circulam por editoriais de revistas especializadas, páginas de internet, como referência em outras histórias, enfim estão por toda parte. O que é preciso saber aqui é que quando a gente chega no centro das coisas, os criadores de verdade, as verdadeiras cabeças pensantes, são muito poucas. Se formos olhar na música por exemplo. Quantas e quantas músicas as pessoas conhecem nas vozes de milhares de intérpretes e que são dos Beatles ou do Bob Dylan? Nas HQs não é muito diferente. As pessoas com pouca (ou nenhuma) capacidade de criar coisas novas, roubam os conceitos criados por quem realmente entende de contar histórias. Então, mesmo quando Sandman ainda era só mais uma palavra em inglês que eu não sabia o significado, a sombra do nome Neil Gaiman já pairava sobre as histórias que eu lia.

O tempo passa e eventualmente alguma coisa realmente escrita pelo tal Gaiman cai na minha mão. Agora eu não consigo me lembrar exatamente qual foi a primeira história dele que li, mas deve ter sido alguma edição de Sandman. Sandman é considerada ainda a maior obra que esse autor já escreveu. Uma saga em quadrinhos, com início, meio e fim (por si só, no mercado americano -- acostumado a mamar tudo que um produto lucrativo pode oferecer até que ele não ofereça mais nada --, isso já foi uma conquista) e que definiu novos parâmetros para as histórias em quadrinhos de um modo geral. Para muita gente, Sandman, mais do que revolucionar a mídia na qual foi publicada, foi o marco de uma virada comportamental, que ajudou a definir a juventude dos anos 80, além de elevar as HQs ao patamar de literatura. Exageros à parte, quando li Sandman pela primeira vez, não achei lá grandes coisas. Olhando pra trás, hoje penso que isso tem muito a ver com a minha idade na época em que li e com o fato de que eu estava maravilhado com outro autor de quadrinhos: Frank Miller. Miller tinha um estilo muito diferente de Gaiman. Ele era seco feito um Martini, texto preciso, frases curtas -- meio Hemingway --, suas histórias eram cheias de violência gratuita, sarcasmo, tiroteios e emoção. Era quadrinho rápido, feito filme de aventura, mas ainda assim com histórias envolventes. A diferença é que ele contava (e desenhava) o que o leitor precisava saber pra entender a história e só. O resto era por sua conta. Gaiman, assim como (quase) todo escritor inglês de quadrinhos, escrevia demais. Todas as suas histórias eram desfiles de verborragia infinita, com um monte de personagens com visuais legais que falavam sem parar. Muito chato. Na época.

Para que fosse possível aprender o porquê do falatório em cima do Neil Gaiman, eu teria que esperar anos ainda e entender algumas coisas que quando li pela primeira vez eu não entendia. Uma dessas coisas é o fazer das HQs. Se você nunca fez uma história em quadrinhos, você provavelmente não tem a menor idéia do trabalho que dá. Desenhar pessoas é o primeiro passo de um processo longo e demorado que pode levar anos, vide Alan Moore -- mais sobre esse outro autor inglês no futuro. Tem-se que pensar em ângulos, enquadramentos, iluminação, cenário, expressões faciais e isso eu estou falando só da parte de desenho. Ainda é preciso ter uma história consistente, um roteiro crível, diálogos idem, blá, blá, blá... mais uma infinidade de coisas que não te interessam. Neil Gaiman se interessa por essas coisas. Mais do que isso, ele domina cada nanomilímetro do processo de se fazer histórias em quadrinhos com maestria. Ele conta histórias com a clareza de quem pinta um quadro clássico, ele esconde elementos importantes -- jogando-os na sua cara -- como um escritor competente de romances policiais. Ele sabe contar histórias. E aí vem uma parte que um monte de gente se esquece: isso é o resultado de trabalho.

Mais de uma vez li entrevistas do Gaiman. Um dos assuntos dos quais que ele sempre fala é da quantidade de coisas que ele faz. Como pessoa inquieta que é, está sempre criando histórias novas, já publicou vários livros infantis -- em parceira com o amigo e autor de todas as capas de Sandman, Dave McKean --, dirige filmes caseiros nas horas vagas, é romancista, participa sempre de convenções e tardes de autógrafos e nunca pára. Mas sempre está lá o Sr. Gaiman falando do seu trabalho. Não raro, ele já mencionou que demorava um dia inteiro para escrever cada página de uma edição de Sandman. Isso significa trabalho duro. Busca de referência, pesquisa, contato com profissionais de outras áreas -- para saber de procedimentos médicas, por exemplo -- e isso tudo nos anos 80, quando internet ainda era sonho (sem intenção de trocadilho).

Então tem essa coisa toda de adorar um sujeito que criou histórias e personagens legais pra caramba. Mas o que vejo, e isso não é só porque sou contra adorar qualquer coisa, é só um cara que não tem medo de trabalhar e o faz o tempo todo. Porque se você acha que o Gaiman é um ser iluminado que recebeu a dádiva divina de criar os irmãos perpétuos, você está muito, MUITO enganado. Ele pesquisou, procurou por livros antigos de mitologia nórdica, mitologia celta, livros de magia (he, he, he...), enrolou isso tudo num pacote mastigável, diluiu com precisão em -- no caso de Sandman -- 73 números de uma revista em quadrinhos e todo mundo comeu. É genial? É! Sem dúvida! Genialmente bem amarrado, bem escrito, bem contado. Uma história que deve ser lida por todo mundo que quiser ler uma ótima história. E tudo o que ele escreve é assim. Extremamente pesquisado, muito bem cuidado, talhado com carinho, de forma que, ao ver uma convenção de serial killers, você seja convencido de que ela é totalmente possível. Porque é isso que o bom artista faz. Ele torna crível. Pega no ar e transforma em coisa, dá forma, cor, brilho, contraste, e a gente aqui vê o produto final achando que foi mágica. Bem, não foi!

Mas outras pessoas também sabem fazer quadrinhos tão bem quanto o Neil Gaiman, então por que ele é tão famoso? Porque ele escreve. Ser famoso como escritor é muito mais difícil do que ser famoso como desenhista. O desenho está ali. É só ver. Se você não for cego, então pode fazer, ao menos na base do juízo de valor, uma análise do desenho. "Grádei" ou "não grádei". Mesmo para se fazer uma análise do tipo "Grádei" ou "não grádei" de um escritor é preciso parar e ler. Requer trabalho, alguma dedicação, um pouco de tempo, essas coisas que ninguém mais tem hoje em dia... Neil conseguiu não só ficar famoso como escritor, como sua fama transcendeu o mundo das HQs e chegou até o mundo real. O texto dele não é o que se pode chamar de um texto de HQ, apesar de se encaixar perfeitamente bem dentro dos quadrinhos, mas é um texto que rompe barreiras. É lírico, poético, humorístico, sádico, irônico, é o que tem que ser. Acompanha o personagem, sai das limitações da página e nos pega pelo pescoço. São dele frases como, "A inocência, uma vez perdida, nunca pode ser recuperada" e "as pessoas pensam que sonhos não são reais porque não são feitos de matéria, de partículas. Sonhos são reais. Mas são feitos de pontos de vista, de imagens, de memórias e trocadilhos e esperanças perdidas." Essas frases, colocadas nas bocas dos personagens fantásticos que Gaiman criou, tornam a coisa toda mágica e fenomenal.

Imagine o Sonho conversando com você. O Sonho mesmo. Ele é uma pessoa. Parece o vocalista do The Cure. Quando o Sonho itself é um personagem, praticamente qualquer coisa que ele disser vai soar inusitado. O mesmo pode se dizer da Delírio (que é uma mulher), do Destino ou de qualquer um dos irmãos perpétuos, que são os personagens principais de Sandman. Sonho (ou Sandman) é o principal. Tem uma infinidade de outros nomes pelos quais é conhecido. É um personagem folclórico tanto aqui no Brasil quanto em outros países. Conta a lenda que ele joga areia nos olhos das crianças para que elas possam dormir. Por aqui, é mais conhecido como "João Pestana". Os outros perpétuos são Delirium, Desejo, Destino, Destruição, Desespero e Morte (a irmã mais velha). A morte não é de hoje que tem várias e diferentes encarnações mundo afora. Todos os outros perpétuos são versões de lendas antigas ou adaptações de personagens folclóricos. O que estou querendo dizer é que para se criar coisas novas é preciso saber o que já existe. Mas apenas copiar quem já fez significa repetir para sempre as mesmas histórias. Gaiman pegou conceitos antigos e os redefiniu tornando-os todos coisas novas. Veja a morte, por exemplo. Personagem presente até na peça "O fantasma da Ópera" -- lá chamada de "Red Death" -- tem mil diferentes faces. Terry Prachett criou a sua na série de livros ambientados no universo onde existe o Discworld que é uma das minhas prediletas. Mas Gaiman deu uma forma e uma personalidade tão marcantes para a morte dele, que desde que eu a vi, quando se fala em morte perto de mim, eu penso numa menina pequena de pele muito branca e cabelos pretos desgrenhados. O próprio Gaiman disse certa vez que criou a morte com a qual ele gostaria de se encontrar na hora de ir embora. Quem não gostaria de encontrar a primogênita dos perpétuos quando chegasse a hora?

Outra coisa que faz do Neil Gaiman diferente dos demais é sua capacidade de se reinventar. Sandman poderia ser uma desculpa perfeita para nunca mais escrever nada e viver de colher os louros que essa série gerasse. Mas quem é bom não faz isso. E Neil Gaiman é muito bom. Assim, provando que existe muito mais do que o mestre dos sonhos em sua obra, segue aqui o que se pode ler dele que vale a pena e já foi publicado no Brasil:

Sandman -- primeiramente editado pela Editora Globo, com todo o típico respeito que a Globo sempre teve com leitores de quadrinhos, ou seja, NENHUM!!!! (aguardem posts sobre a editora Globo em breve). Uma segunda edição foi lançada pela "Metal Pesado"/"Tudo em Quadrinhos"/"Atitude" ou sei lá qual era o nome dessa editora nas semanas em que publicou Sandman. Edições muito bem cuidadas, por sinal. Com páginas explicativas no final, falando das referências, do impacto que cada edição causou, sempre com textos muito bem cuidados. Após falir a "Atitude" (que acho que foi a última encarnação dessa editora) passou a batuta para a Brainstore, que é ainda a responsável pela publicação. Preço nas alturas, impressão mediana, tradução diferente e falha, papel ruim, sempre com erro de registro de alguma página ou na colocação dos textos em alguns balões. É triste! E CARO!!! Dizem que a Via Lettera irá lançar novamente a saga toda por aqui, dessa vez em forma de sagas encadernadas. Guarde dinheiro, caso você esteja pensando em comprar, porque a Via Lettera também é conhecida pelos preços salgados. Eu diria preços do tipo "mãos pra cima e dê-me todo o seu dinheiro", mas seria pouco educado.

Coraline -- livro infanto-juvenil publicado por aqui pela Editora Rocco e também ilustrado pelo grande Dave McKean. A Rocco pisou na bola e o livro tem um número de erros de digitação e de tradução que quase compromete a leitura. Mas é a história de Coraline, menina que se muda para uma casa grande e lá descobre essa porta secreta que a leva para uma dimensão paralela à sua. Aventura fantástica e linda e magicamente ilustrada.

Stardust -- é outra aventura fantástica e linda e que vale a pena ser lida e relida sempre. Conta a história de um jovem que, em busca do coração de uma garota, acaba entrando no mundo das fadas e descobre mais coisas do que se pode imaginar. Ilustrado por Charles Vess, Stardust é leitura obrigatória para todo mundo que quer ler alguma coisa que presta. Publicado pela Editora Conrad.

Deuses Americanos -- é seu o primeiro romance propriamente dito e outra publicação da Conrad. Um "road book" no qual acompanhamos Shadow, personagem principal, numa viagem pelas entranhas dos Estados Unidos.

Fumaça e espelhos: Contos e ilusões -- é publicação da Via Lettera. Livro de contos, muitos nunca publicados antes.

Belas Maldições -- é uma grande brincadeira com as profecias de fim do mundo que proliferaram na virada do século. O anti-cristo é uma criança normal de 11 anos de idade. Os soldados mobilizados pelo Céu e pelo Inferno para preparar a chegada do Armagedon na Terra, além de serem amigos, adoram esse planeta e têm três dias para impedir que o plano maligno de destruição global se concretize. Publicação da Bertrand Brasil que tem preço obsceno, no nível "eu-vou-te-estuprar-mas-você-fique-caladinho".

Os Caçadores de Sonhos -- é mais um da Conrad e trás a magnífica arte do japonês Yoshitaka Amano, conhecido por ser o responsável pelo design dos personagens de várias edições do jogo Final Fantasy. "Caçadores..." é a adaptação de um conto folclórico japonês: "A Raposa, o Monge e o Mikado dos Sonhos". Experiência única na interseção arte-texto, "Os Caçadores de Sonhos" tem que fazer parte da sua coleção de bons livros.

O livro dos Sonhos -- na verdade são dois volumes. Ambos são livros de contos ambientados no universo de Sandman, mas eles são só editados por Gaiman, que cedeu a vez a outros talentosos escritores e decidiu não escrever nada.

1602 -- é a primeira e única (até agora) colaboração de Gaiman com a Marvel Comics, principal editora de quadrinhos dos EUA. Vale pela curiosidade. E porque é do Gaiman.

Noites Sem Fim -- é um álbum de luxo, editado pela Conrad, e que comemora 10 anos de criação do selo Vertigo -- divisão de quadrinhos adultos da DC Comics, a principal rival da Marvel Comics. Sandman é considerado por muitos o pai e símbolo mor da linha Vertigo. "Noites..." é lindo e eu não posso falar mais nada. Vai lá, seja estuprado pelo preço obsceno desse álbum, mas não fique sem ele.

Abraços,
Leandro.

posted by Leandro @ 10:15 PM  
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