Fim do mundo
sábado, fevereiro 19, 2005
Felicidade
[História]
Parou a velha senhora no limiar da rua, segurando firme a sua bolsa de couro junto ao corpo, esperando o sinal de pedestres se abrir. Olhou pra o lado, levantando a cabeça, procurando o rosto do garoto que assomava ao seu lado. Seus olhos, aumentados algumas vezes devido ao alto grau dos óculos que usava, estavam arregalados. Ajeitou-os sobre o nariz pequeno e quando estava convicta de que enxergava o garoto bem enxergado, perguntou sem certeza nenhuma:

“Você sabe se o supermercado ali da frente está aberto?”
“Não sei, não” – respondi devolvendo a mesma incerteza. Mal sabia eu que existia ali naquelas redondezas um supermercado, ainda mais se o tal estaria aberto naquela tarde ensolarada de Sábado.
“Você me acompanha até lá?” – Ela perguntou ainda olhando-me com seus olhos enormes.
“Claro!” – disse eu me sentindo um tanto responsável. Foi a última coisa que disse pra ela antes de nos despedirmos. Em parte por vergonha, em parte porque daí pra frente eu mais ouvi o que ela tinha pra dizer.
“Você é um moço grande”, ela disse em seguida enquanto atravessávamos a rua. “Lincon, ex-presidente dos Estados Unidos, também era um homem grande. Era sim! Ele era um homem grande e forte e foi assassinado. Atiraram nele pelas costas enquanto ele via uma peça num teatro lá nos Estados Unidos. Eu sei dessas coisas, sabe? Eu gosto muito de história. Você gosta de história? Eu adoro história! Meu filho é professor de história, mas ele não é grande assim. O Lincon foi um grande homem. Em todos os sentidos. Eu sei dessas coisas por causa dos livros de história que eu leio. Eu sempre leio livros de história porque eu adoro história. Meu filho dá aula numa universidade e ele também gosta, é professor de história. Então tá, tchau!”

Quando me virei para despedir a velha senhora já tinha sumido para dentro do supermercado, que sim, estava aberto.

Essa história aconteceu a mais de cinco anos atrás, mas sempre me lembro dela. Cada vez que lembro, no entanto, descubro que os detalhes estão desaparecendo da minha memória. Não todos, mas alguns de que eu me lembrava com precisão.

Aquela fora a primeira vez que alguém conversara comigo daquele jeito desde que eu me mudara para Belo Horizonte. Sem pré-conceitos. Conversou porque queria alguém pra conversar, porque ela achou que eu poderia ser a garantia de que ela chegaria sã e salva até o supermercado. Foi um momento feliz pra mim, coisa que era rara naqueles dias. Outros momentos felizes se sucederam depois desse – alguns até aconteceram antes desse, na verdade, mas eu estava amargo demais para sequer perceber que eles tinham acontecido – e outros tantos ainda estão por vir.

Procuro guardar com carinho, em algum cantinho da minha memória que eu possa visitar sempre que quiser, esses pequenos pedaços de felicidade plena que acontecem. É claro que existem grandes episódios de realizações pessoais que merecem celebração, como tirar carteira de motorista, passar no vestibular e fazer aniversário, mas são as pequenas coisas, as pequenas situações cotidianas que nos fazem sorrir em um dia qualquer, que dão o tempero da vida. São essas as quais me lembro quando deito minha cabeça sobre o travesseiro para dormir de noite e são com essas lembranças boas que quero me agarrar se o universo decidir conspirar contra.

A velhinha que acompanhei até o supermercado está num desses cantinhos empoeirados. Sempre que lembro nela, não consigo evitar de pensar se ela ainda está viva, se ela sabe alguma coisa a mais do que história dos Estados Unidos ou se o filho idiota se lembrou de ligar para a própria mãe, de modo que ela não precise conversar com estranhos na rua para não se sentir ainda mais sozinha do que já se sente. Por mais remotas que sejam as chances, ainda gostaria de encontrar com essa senhora de novo e agradecer. Ela me faz sorrir até hoje, coisa que muita gente que conviveu comigo durante muito mais tempo nunca conseguiu fazer.

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Hoje, como me lembraram, faz um mês que não posto aqui. Tenho escrito pouco, trabalhado um bocado, mas menos do que gostaria e tentado resolver alguns problemas que existem mais na minha cabeça do que em qualquer outro lugar. Acho que esses problemas são os piores, mas não me arrisco a colocar problemas num ranking, já que eles tendem a se superar. No entanto, hoje termina o horário de verão, amanhã vou ver minha namorada (que não mora aqui em BH), tenho desenhado bastante (qualquer dia desses posto alguns desenhos aqui) e vi um ótimo filme (sideways) hoje com meu irmão mais novo. São coisas boas, que me fizeram escrever ingenuamente sobre felicidade.

Volto a ser amargo e a xingar essa porra de mundo que está cada vez mais maluco no próximo post. Voltem daqui a um mês e talvez eu lhes traga alguns palavrões para acalmar as suas almas, seus bastardos.


Abraços,
Leandro

posted by Leandro @ 8:44 PM   0 comments
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About Me: Nasci em Formiga-MG, moro em BH. Formado em publicidade e propaganda pela PUC-MG, mestrando em comunicação social.
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